CONFLITOS: DE WILL SMITH A BOLSONARO
Recentemente, a imprensa reproduziu inúmeras vezes o tapa que o ator Will Smith desferiu contra o colega Chris Rock, em plena cerimônia de premiação do Oscar. A celeuma teria começado por conta de uma piada infame sobre os cabelos de Jada Smith, esposa de Will, que sofre de alopecia, assim, sobreveio o ato de violência como resposta ao desrespeito. Em seguida, como é típico das redes sociais, houve a divisão em partidos: os pró-will argumentaram a defesa da honra; os contrawill advogaram pela liberdade de expressão e a impossibilidade de serem favoráveis a uma agressão física. Pois bem, feito este pequeno resumo para relembrar uma história que, em alguns dias, será completamente esquecida por todos nós, acrescento que resolvi escrever este ensaio não para defender ou acoimar um dos dois polos. Pretendo cavoucar um pouco mais, abandonar o discurso comezinho e discorrer brevemente sobre o conflito pelo qual Will Smith teve que passar em pouquíssimos segundos, pois, no final das contas, somos sapiens, mas, também, conflictus.
Quando a dourada estatueta finalmente possuiu o seu humano, aos prantos, ele agradeceu a todos, pediu desculpas, e se ali houvesse uma trilha sonora seria o Concerto nº 4 para Piano e Orquestra de Beethoven, o segundo movimento, Andante con moto. Nessa obra, uma pessoa atenta é capaz de enxergar a gritante beligerância entre a tirania das cordas contra a candura do piano. Beethoven não criou novidade alguma, apenas deu azo ao que havia de mais humano em si, o conflito interno do qual ele era formado: continuar a viver apesar da surdez ou entregar-se ao suicídio?
Nas Letras ocorre o mesmo e é ainda mais óbvio: quanto aos gregos, eu poderia destacar Édipo, Antígona, Medeia, Orestes; Madame Bovary dentre os escritores franceses; Padre Sérgio e Ana Karenina na obra de Tolstoi ou Crime e Castigo de Dostoievsky, enfim, a lista pende ao infinito. Neste último romance, por exemplo, o personagem Raskolnikov sofre da culpa por ter assassinado duas senhoras; entretanto, a sua contrição manifesta-se apenas no soma (corpo), febril e em convulsões, pois racionalmente o assassino é incapaz de reconhecer em si o remorso. Não por acaso, Dostoievsky escolheu muito bem o nome de seu anti-herói, pois “raskol” significa divisão: Raskolnikov é um homem cindido, mais um homo sapiens conflictus. Por isso, digo ser inequívoco o atributo da arte de conduzir o ser humano ao limite de sua existência, ou até mesmo a atravessar certas fronteiras perigosas; o que é a criação artística, afinal, senão o reflexo humano elevado a potências infinitas? Quando vi o senhor e a senhora Smith, vislumbrei o mesmo terrível duelo de valores vividos por Tristão e Isolda: de um lado, a defesa da virtude e da imagem da família; de outro, o ato desonroso. Eis a explicação das lágrimas de Will, porquanto o conflito causa dor, desconforto e pesar em demasia.
Aqueles insociáveis das redes, supostos paladinos da temperança, que escolhem uma postura e apontam na direção oposta com desdém, não percebem a constante perturbação que é inerente ao ser humano, tão escancarada na arte. Fingem ignorar a cisão que há em cada um de nós, pois defender um dos lados, simplesmente, é discurso raso que subestima a natureza humana.
E a política? No ambiente público o confronto de valores é externo ao indivíduo, está no campo da retórica relativista, portanto, por isso mesmo, igualmente raso e superficial. Vemos Bolsonaro e Lula, cada um com os seus missionários, teoricamente em franca oposição de ideias. Floresce o questionamento: por que esse digladiar ostensivo provoca tantas paixões nas pessoas, amor e ódio, simpatia e rejeição? Ora, a resposta é simples: a escolha de um lado arrefece a luta interna, causadora de sofrimento; ao escolher um e rejeitar o outro, evitamos as mesmas lágrimas de Will Smith, o pranto do homo sapiens conflictus, em uma vã tentativa de apaziguar a natureza humana e encontrar conforto.
Por fim, lá vai um conselho: se queres o encontro com o humano, demasiado humano, se fores capaz, pergunta-te o que há nos dois candidatos que mais causa aversão e admiração em ti, pois não te iludas, o que há em ambos, encontrarás no homo conflictus que tu és. Ou aponta o dedo em ar acusatório, elege uma horda, e dorme anestesiado com os teus, confortavelmente, no berço esplêndido da República.
Itumbiara, 01 de abril de 2022.
HENRIQUE VIEIRA DO CARMO