Você sabe o que é julgamento com perspectiva de gênero?
Especialistas explicam como preconceito acontece em diversas áreas do direito e o que está sendo feito para mudar isso
Para atender a uma recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Brasil tem se posicionado a favor da adoção de um documento latino-americano para incentivar a formação de uma cultura jurídica emancipatória e de reconhecimento de direitos de todas as mulheres. Esse foi o objetivo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao lançar em 2021 o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Neste Dia da Mulher especialistas explicam um pouco mais sobre esse documento e sua importância.
O advogado previdenciarista Jefferson Maleski, que integra o escritório de advocacia Celso Cândido Souza Advogados, comenta que esse foi um problema levantado por quem vê isso na prática. “Esses debates chegaram no CNJ que, preocupado com essa discriminação de gênero, elaborou um grupo de trabalho para levantar os principais motivos de discriminação em casos judiciais. É o movimento da sociedade que vem apontando essas falhas, que acontecem em todas as áreas do direito, algumas mais visíveis do que outras”.
Ele exemplifica uma das formas que essa discriminação acontece em sua especialidade. “Na área previdenciária, principalmente na área rural, existe uma regra, uma permissão para que o trabalhador rural possa usar documentos rurais que estão no nome de outro membro da família. É muito comum, por exemplo, que o marido saia para fazer as compras dos insumos agrícolas, ração, mantimentos, ferramentas agrícolas e o cupom fiscal que ele pede saia no nome dele. A esposa e os filhos podem usar esses documentos gerados pelo marido. Contudo, se esse mesmo marido vai para a cidade e trabalha como servente, como pedreiro, o juiz anula essa nota fiscal para toda a família. E ela acaba ficando sem documentação, porque não é retirada no nome dela”.
Vara de família
A advogada familiarista, Ana Luisa Lopes Moreira, que também integra o escritório Celso Cândido Souza Advogados, ressalta como é a discriminação em sua área de atuação. “Geralmente, em ações de alimento, o padrão de valor estipulado é de 30% do salário mínimo, ou do salário do genitor, mais 50% dividido das despesas extraordinárias que se dividem entre os genitores, como um dentista, por exemplo. Por aí já se pode ver que o desgaste maior recai na mulher, pois os gastos com a criança são, em regra, maiores que aqueles 30% e a mãe vai se virar para suprir”.
Segundo ela, para determinação da pensão a doutrina determina a consideração do trinômio razoabilidade (se o valor é razoável), possibilidade (quanto o pai pode pagar) e necessidade (o que a criança precisa). “Contudo, na prática, a necessidade da criança fica em segundo plano, pois o que pesa é a possibilidade de quanto o pai pode pagar, dessa forma afetando a razoabilidade. Em muitas sentenças não se consideram as possibilidades da mãe e os gastos totais que se tem com a criança, supervalorizando a possibilidade paterna em detrimento destes outros dois importantes aspectos. Normalmente, a mãe não vai reduzir o estilo de vida que a criança leva e vai ficar com a carga maior. Isso sem falar que ela já é sobrecarregada emocionalmente por ter de lidar com o abandono afetivo do filho, em razão deste abandono ser em sua maioria praticado pelo pai”, diz Ana Luisa.
Na prática
Jefferson Maleski destaca como o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero tem sido aplicado. “O CNJ vem determinando que em cada região judiciária, cada vara, cada comarca, tenha pelo menos um juiz ou uma juíza com treinamento, com curso de protocolo de gênero, para que ele possa divulgar essas informações. O ideal seria que todos os juízes passassem por esse treinamento para identificar essas discriminações e passar a utilizar nos seus julgamentos, evitando essa discriminação”, afirma.
Enquanto isso não acontece, ele destaca a atuação dos colegas. “Cabe aos advogados levantar essa questão nas suas peças. Ele tem que apontar que está acontecendo uma discriminação, alguma coisa relacionada ao gênero. Mostrar que ali, se fosse um caso inverso, não estaria sendo feita aquela exigência pelo juiz. E se o juiz não entender, recorrer para as instâncias superiores, até mesmo para chegar ao CNJ, que vai intervir e demonstrar também que precisa haver uma mudança, uma correção nesses julgados”, pontua.