O MAL E O BEM

O Mal resolveu visitar o Bem, que estava sentado sobre o Trono da Bondade. Presentes, além deles, estavam duas crianças: Prudência e Inocência. O Mal saúda-o com uma cuspida no chão, de onde nasce um espinhoso e seco cacto, e inicia sua argumentação:

— Sabes o que nos distingue? A Verdade. Eu sou translúcido; qualquer um, do mais idiota ao mais sábio, vê-me e, indiscutivelmente, reconhece-me nos atos dos meus emissários. Eu grito, bato no peito e sou visto. Não nego minha essência. Não tento abonar o meu ser. Sou honesto, diferente de ti!

“Vê aquele homem. Olha-o e não te acovardes! Ele está a espancar uma idosa por algum numerário, sua mãe, prestes a morrer. — A honesta e justa féria do dia! Quem poderia justificar, ou não perceber, as vis obras de um seguidor tão fielmente declarado a mim? Aquele homem é meu, pertence-me e suas ações são a prova irrefutável de que estou em cada soco, hematoma, lágrima e grito de desespero daquela mulher e tantas outras. Tu estás no auxílio, no socorro que não vem, que se acovarda. Tu te escondes no charco da mentira. Enquanto eu sou todo Verdade e transparência.

“Obviamente já tiveste a chance de assistir ao sincero espetáculo do Mal: duas crianças em franco desabrochar de sua natureza, sem o raciocínio pronto, sem a dissimulação, apenas a franqueza em suas brincadeiras. Nada mais há que o egoísmo, violência, sede de posse e de submeter o outro ao seu domínio. Eu estou incrustrado na humanidade desde a mais tenra idade. Reconheço que com o tempo, os homens são ensinados a apagarem o meu chamado, uma deslavada mentira para a proteção dos mais fracos, mas eu estou lá, no interior de cada um, pronto para ser desperto. — Um instrumento de sobrevivência.

“Observa! Uma mulher, acompanhada de seus três filhos pequenos, está a mendigar. Vê-os! Um homem aproxima-se e oferece ajuda através de algum dinheiro. Quem poderia desconfiar de nobreza tão aparente? Mas… analisa melhor, olha o íntimo no agir. O homem segue-te e pratica as tuas boas ações para sentir-se superior — eis o fato. Ah! Eu já estou fatigado das pessoas que dizem: Como é bom fazer o bem… Quando praticamos as boas obras, nós é que somos beneficiados. Ah… isso é favorecimento próprio e calculado. O ar de superioridade que pretendem auferir demonstra a escuridão que há neles, em ti e em tua obra. O bem pelo bem? Nada disso; não há tais ações. O que há, verdadeiramente, é o bem pelo inflar do orgulho mais íntimo e recôndito. Vaidade!

“Por extensão, sempre haverá aqueles que vislumbrarão a caridade como estímulo à mendicância e desprezo ao trabalho. Presumirão que o dinheiro adquirido será revertido em bebidas de alto teor alcóolico ou entorpecentes que alimentarão as bocas adolescentes. Enfim, uma boa ação que acabará por trajar a vestidura da dúvida. Onde há a Verdade em ações que podem padecer de interpretações tão díspares?

“Tu te escondes.

“O fato é que os teus mensageiros são desejosos de mais e mais mendicantes, doentes e sofredores. Que assim seja. — Se agissem honestamente, eis que anunciariam — Que jamais acabem com os miseráveis. Afinal, de que outra forma poderiam os hipócritas se sentirem tão bem e altivos após aquele tributo final — Deus abençoe-o, meu filho? E o viço na vaidade? Eis o mais viciante dos ópios fornecido por ti. O teu séquito cobre-te de mentiras e falsidades. Segue-te com o único objetivo de alimentar o próprio desejo, e assim, aproveitam-se da aparência que maquia as intenções.

“Eu concedi aos homens o privilégio de reconhecerem minha filha: a Prudência. Ela promove a desconfiança, faz com que até mesmo os mais tolos percebam minha presença e tomem as devidas precauções. Nada mais favorável a mim que a Prudência em exageradas proporções — torna o homem cauteloso em covarde, o altruísta no mais vil egoísta, o medroso em uma estátua petrificada ao ver a terrível górgona, Medusa. A tua filha… eu também a uso, a Inocência. Menininha adorável que esconde a minha presença, até mesmo nega a minha existência, mas, ao fazê-lo, abre-me a porta para uma entrada triunfal. A Prudência afirma-me, a Inocência nega-me e ambas são servis aos meus propósitos.”

— Mas não haveria aqui uma contradição, uma mentira… — O Bem tentou iniciar uma inútil réplica.

— Cala-te. — Ordenou o Mal ao lhe desferir um forte soco. O Bem estava sentado sobre um tipo de cadeira de faquir, cheia de pregos, fortemente atado a correntes, o Trono da Bondade. Aparentava fraqueza e esqualidez, enquanto o Mal tinha a compleição de um corpulento guerreiro espartano.

— Eu, — continuou o Mal — diferentemente de ti, em Verdade e Força, proclamo o meu nome. Que todos me vejam e reconheçam prontamente minha face.”

O Bem, também filho do Mal, redarguiu:

— Rebato teus dizeres com todo afeto e caridade, para que não restem dúvidas e entendas-me. Tu hás de concordar comigo que não há mentira na Verdade. Ou seja, a Verdade só poderia ser o que é: verdadeira. Pois bem, ocorre que nem todos são capazes de enxergá-la; por vezes ela se esconde, pois sua apreciação depende dos falhos sentidos daqueles homens e mulheres que há pouco apontaste. Mas isso, de algum modo torna a Verdade em mentira? Claro que não! A Verdade não está na visão ou no tato, não depende da linguagem. —  Ela é em si mesma.

“Ora, portanto, se por vezes eu não me manifesto de forma tão transparente, como tu dizes comportar-se, isso não me transforma em um mentiroso. Pelo contrário, iguala-me à Verdade, em toda a sua complexidade e virtude; e tu, à simplicidade das simplicidades.

“Mas nem por isso te desdenho, pois de ti fui parido, para corrigir as tuas iniquidades. — Eu, o Bem, sou a evolução dos teus atos. Sem a tua existência eu não desperto; necessito de ti e amo-te, meu criador.”

O Bem levantou-se do Trono; de suas feridas escorreram sangue e água, que ao encontrarem o solo fez brotar lindas e espinhosas rosas vermelhas. Beijou o Mal na face e segurou suavemente suas fortes mãos. Quanto às correntes… transformaram-se em pó, soprado e espalhado igualmente a toda a humanidade pela Prudência e Inocência, a pedido do Bem.

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